O SOAR DO VENTO


Um pires dá suporte à única luz da casa. É início de noite. A vela tremula e se esvai rapidamente. A cidade está às escuras. A tempestade daquele último dia de junho assustou a todos, poucas horas antes.

 O vento, que passou a mais de 100 quilômetros por hora, levou postes, árvores, telhados, jardins e deixou névoa na vidraça da varanda. Derrubou parte do abacateiro e os frutos espatifaram-se na cerca de tela. Sem bateria, o celular desligou. É cedo demais para dormir. Queria ler, mas faltava os óculos esquecidos sabe-se lá onde. 

O silêncio é quebrado por sirenes que amedrontam o pensamento. Uma antiga agenda serve para anotar o que vem à mente, entorpecida com a taça de vinho tinto. Fazia tempo que não escrevia… não havia dado oportunidade ao tempo. Mas naquele anoitecer de inverno, bem na metade de um ano atípico, a circunstância a faz encostar-se embaixo de um cobertor na poltrona desbotada.

A noite agora é de alívio e calmaria. O passar das horas traz miados e latidos ao longe, e mais vinho. É preciso aumentar a luz e outra vela em outro pires cintila no mesmo braço da poltrona.   

Observa pela janela que no alto do morro um clarão e um estrondo denunciam que a tempestade seguira em direção ao mar. Mas, a luz não retornaria tão cedo. Dois postes estavam curvados só naquela rua. 

A noite seguiria escura e silenciosa. Haveria tempo para pensar nos dias, nos meses, nos anos, e para tocar em pontos adormecidos lá no que já vai longe das lembranças. Carolina, a Cora de Guilherme, olha em volta e vê o prazer que a vida possibilita. Os vinte anos passados sem Guilherme lhe devolvia a paz e a certeza de que o amor existiu e foi bom. 

Lembra do início de tudo. Brigaram e se beijaram durante um sonho dela. E, por acaso, naquela semana se encontraram em um bar. Ele ofereceu a jaqueta ao percebê-la com frio. Ela vestiu e agradeceu. No bolso um bilhete trazia o número do celular dele. Fez que não viu. No sábado seguinte devolveria a jaqueta no luau da praia vizinha. E, mesmo sem admitir para si, contou os dias. E o dia chegou. Mas, os amigos não eram comuns e os dois permaneceram afastados. Após horas, goles e olhares, se esbarraram num quiosque não tão próximo. 

 – Quando irás baixar a guarda? disse ele.

 – Quando valer a pena, disse ela, já se arrependendo da indelicadeza. 

Pediu desculpas e seus olhos fixaram-se em silêncio. As falas e as batidas das ondas pouco importavam naquele embate de retinas. Aproximou-se dos braços dele, entregou-lhe a jaqueta, apontou discretamente para o bolso e retornou ao pequeno grupo logo adiante. No novo bilhete: um obrigada, um surpreenda-me e seu número de celular. Bastaram poucos minutos para a mensagem chegar:

– Vá até o mar e olhe à esquerda.

Ela visualizou o vulto que aguardava pelo segundo beijo – agora não mais em sonho. E, os anos passaram juntos e separados.    

Agora, o momento presente exala o perfume suave do vinho no tremular dos tocos de velas. Lembra do e-mail daquela semana e do convite para ele conhecer a nova casa. Lembra do passado, das palavras engraçadas que só confidentes entendem. Lembra do “Bj” para encerrar a conversa curta e insinuante. Lá longe, há vinte anos, está Guilherme. Lá longe, há vinte anos, ainda estão juntos em pensamento. Foi bom viver e agora lembrar. Lá longe, há vinte anos, as incertezas da vida os deixaram de lado. Aquela casa às escuras, naquela noite fria de junho, diz para Carolina, a Cora de Guilherme, que uma nova brisa acaba de passar e amanhã trará outras flores ao abacateiro. 

(30/06/2020, terça-feira, 18h30m: sem energia elétrica, sem celular e sem Internet. Ciclone-bomba/Rio do Sul/SC) 

Obs.: Não é a primeira vez que Carolina e Guilherme aparecem por aqui, clique e confira outro texto em homenagem aos dois.

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