Quando uma viagem numa noite de inverno…

Uma leitura em que muito da história parece ser composta despretensiosamente por Italo Calvino e, de repente, revela-se. Tudo o que se queria estava lá o tempo todo.

Palavras, sete delas, partem da misteriosa conjunção “se” e formam o título que desafia em dúvidas e suposições. Não fosse esse monossílabo, seria outra a primeira impressão sobre Se um viajante numa noite de inverno. Quem sabe a imagem de um viajante qualquer, como vários que se esbarram a cada estação. Porém, o viajante de Italo Calvino traz uma história que coloca à prova a estrutura do discurso, a linearidade da leitura e até o que seria o futuro da literatura.

O livro tem como personagem principal o Leitor, que é desafiado a procurar e ler romances. Ele entra numa livraria e compra Se um viajante numa noite de inverno. A história o fascina, mas há um erro de encadernação que a interrompe na página 30. São páginas que se repetem até o fim. Começa então uma jornada de busca, onde o Leitor da história e o leitor do mundo real – eu e você – se deparam com roubo de livros, suicídio do autor, confisco, prisão e surpresas sabiamente arquitetadas por Italo Calvino.

O autor deixa de lado a construção textual convencional, intercala capítulos do romance com os romances que ditam o enredo do próprio livro. Há muito mais que criatividade e desafio lógico na obra de Calvino. A linguagem simples e sincera traz reflexões sensíveis sobre o tempo e o que se faz dentro dele. “Quem lhe disse que os números do relógio não desfilam em pequenas janelas retangulares onde vejo cada minuto cair sobre mim tão bruscamente quanto a lâmina de uma guilhotina?”.

A história é repleta de expectativas, surpresas e inúmeras possibilidades da existência, a nossa e todas que se revezam no mundo e além dele. Há trechos que mostram a beleza das sombras, a casualidade de encontros e desencontros ou a fala de um idioma ainda não inventado. Elementos que fazem o romance ser um daqueles que possuem “como força motriz o desejo de contar, de acumular história sobre história, sem pretender impor uma visão do mundo, mas apenas fazer você assistir ao crescimento do romance, como uma planta, um entrelaçado de ramos e folhas…”

Dessa vez, a narrativa de Calvino não é curta como em As cidades invisíveis, onde o viajante veneziano Marco Polo descreve (ou inventa intencionalmente?) ao imperador mongol Kublai Khan inúmeras cidades do seu imenso império. Ou como em O castelo dos destinos cruzados, onde um alquimista, um ladrão de sepulcros, um guerreiro e outras figuras percorrem uma floresta e se encontram à mesa de um castelo (ou taverna?). Impossibilitados de falar, são as histórias que, ditadas pelas cartas de tarô, desvendam como cada personagem chegara ali. A aleatoriedade organiza o mundo e cristaliza as imagens em uma narrativa que não é somente o que move o carrossel de Calvino, mas um personagem que se aventura a cada volta.

Histórias fantásticas passam como se vindas pelo ar. Ou as pegamos ao vento, como bem poderia ocorre às leituras encontradas ao longo de Se um viajante numa noite de inverno. No livro, elas se cruzam nas últimas páginas em uma sentença que surpreendentemente descortina toda a inventividade de Calvino. Tudo que se busca está lá o tempo todo.

Talvez reste pouco além de atentar ao próximo “se” que o acaso reserva. Que fique principalmente o que foi dito por Calvino, sem a pretensão aqui de fazer crítica ou discurso teórico. Querer a fantasia do detalhe, o segredo que diz e não diz, e a leitura que infinita em nós. O nada que é visível e palpável e o tudo que cruza destinos nos castelos de cidades invisíveis, numa viagem em noite de inverno.

Se um viajante numa noite de inverno – Italo Calvino

Tradução: Nilson Moulin

2ª edição

Companhia das Letras

*Texto escrito originalmente para a a revista Ruído Cultural e agora editado para propor releituras de Calvino.

Para conferir outros textos de Tiago Amado, clique aqui!

Nos siga nas redes sociais para não perder nenhuma novidade!

Mais Posts

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *