No finalzinho de novembro/2023 trouxe da 21ª FLIP – Festa Literária Internacional de Paraty/RJ (@flip_se) seis novos livros. Destes, coincidentemente, ou não, três retratam famílias.
Entre realidade e ficção, as obras cativam pela sensibilidade no resgate das histórias intrigantes dos personagens e das “coisas do passado” – reveladas e não reveladas. Nos mostram “quantas pessoas passam por nossa vida e não as vemos”. Mas, nunca é tarde para percebê-las.
Com pausas aqui e ali, encerrei recentemente as três leituras.

SAIA DA FRENTE DO MEU SOL
Felipe Charbel (@felipe.charbel) – Autêntica Contemporânea, 2023

A partir de uma caixa com fotografias, algumas memórias e documentos antigos, Charbel apresenta a história real do seu tio-avô Ricardo. Um homem ‘esquisitão’ que morava de favor no quartinho dos fundos na casa da irmã, mãe do autor.
A mídia e as resenhas sobre a obra dizem se tratar de um “romance especulativo, uma biografia fotográfica e, ao mesmo tempo, um relato autobiográfico”. E, tem um pouquinho disso tudo, sim.
De leitura fácil, o livro apresenta recordações de um sobrinho angustiado – que tenta entender a existência de um tio que se escondeu da vida naquele quartinho. E, ele mal percebeu.
Ambientada nos subúrbios cariocas, a obra instiga por tentar uma reparação emocional e histórica por parte do sobrinho/narrador – que reflete não apenas sobre o tio, mas também sobre si próprio.
RECORTES
“Closet, armário, quartinho dos fundos: essa era a geografia reservada a quem, mais que ter um segredo, era um segredo. Acho que meu tio acabou se conformando com essa disposição do espaço físico: havia algo de monástico, certa resignação no modo como ele ocupava o seu cubículo […]”.
“Não circulava pela casa, não quando podia ser visto por alguém. Ele se levantava antes do sol, e só nessa hora morta do dia é que meu tio se dava o direito de escapar da sua toca” […]
“Acho que meu tio dava tanto valor a essa hora de silêncio no comecinho do dia que, se alguém parasse na sua frente e fizesse sombra, ou então se perguntassem a ele se tinha algum pedido que queria fazer, se desejava alguma coisa — pode pedir o que quiser —, Ricardo nem se daria ao trabalho de abrir os olhos:
“Só quero que você saia da frente do meu sol, gente boa”.
“Quando descobri a caixa amarela, custei a reparar nas fotos do meu tio. Elas estavam enroladas num saquinho, embaixo de todas as outras, meio que escondidas. Essa arrumação replicava a lógica de sempre da divisão do espaço da casa: o que cabia a Ricardo era a parte dos fundos, os cantinhos escondidos, fora da vista de todo mundo. Depois de revirar a caixa e espiar as fotos dele, me esqueci de todas as outras”.

O QUE É MEU
José Henrique Bortoluci (@ze_bortoluci) – Editora Fósforo, 2023

Um ensaio biográfico escrito a partir de entrevistas que Bortoluci realizou com o pai (Seu Didi), motorista de caminhão por 50 anos. O livro apresenta passagens marcantes sobre o Brasil, portanto, uma importante reflexão histórica e sociológica.
O autor conta, também, sobre o câncer que acometeu o pai e o tratamento médico durante a escrita do livro. E, reúne memórias da própria infância pobre vivida no interior de São Paulo.
A narrativa é envolvente e afetuosa por cativar pela delicadeza das palavras. Traz, além dos depoimentos, anedotas, causos sobre viagens e colegas caminhoneiros, conselhos e reflexões entre o passado e o presente.
No dia seguinte ao lançamento na FLIP (24/11), Bortoluci comunicou a morte do pai nas redes sociais: “Amigos queridos, o Seu Didi, meu pai, se despediu de nós essa madrugada. Ele teve uma vida grande, e essa vida se multiplicou nos últimos meses por meio de suas histórias. Ele faleceu poucos minutos depois de eu chegar em Jaú (SP), vindo de Paraty. Ele sabia que era imensamente amado”.
RECORTES
“Palavras eram o presente que meu pai trazia de caminhão em minha infância. Elas ressoavam isoladas – boleia, transamazônica, carreta, rodovia, pororoca, Belém, saudades -, ou então formavam narrativas sobre um mundo que parecia grande demais. Eu tinha que imaginá-las com todas as cores, gravá-las na memória, me agarrar a elas, pois logo meu pai iria embora para voltar só dali a quarenta, cinquenta dias”.
“O caminhão trazia meu pai, roupas sujas e pouco dinheiro. Minha mãe se angustiava e trabalhava dobrado, cuidando dos dois filhos e costurando para fora. Sou o filho mais velho. Entendi muito cedo que nossa vida familiar era assombrada pelo risco da pobreza extrema, pela inflação desenfreada, pelo adoecimento precoce”.
“A doença não é apenas um fenômeno biológico, é também um novo reino de palavras, um emaranhado de vocábulos e expressões que colonizam nossa linguagem cotidiana. […] No caso de minha família, fomos também cercados por palavras em rápida multiplicação que passaram a circular pelo corpo do meu pai, a se ligar a ele e lhe dar novos contornos”.
“Meu patrimônio são as palavras do meu pai – as palavras daquelas histórias da minha infância e as que ouvi nestes últimos anos, enquanto ajudava a cuidar de seu corpo frágil”.

LOUÇAS DE FAMÍLIA
Eliane Marques (@elianemarques.escritora) – Autêntica Contemporânea, 2023

Conta a história de vida e morte da empregada doméstica, tia Eluma, narrada pela sobrinha Cuandu. Fala de mulheres negras que, por gerações, trabalharam para famílias brancas.
A narradora quer entender histórias dos ancestrais, além dos efeitos psíquicos do “sistema colonial escravagista”. Conta que, na infância, criou um armário para guardar peças quebradas. Agora, adulta, tenta reconstruir “pedaços de vidas”. Assim, a metáfora das louças (a maioria trazida por navios de tráfico humano), remete o leitor à sensação de quebra, de corpos feridos, de tragédias vivenciadas pelos familiares.A linguagem não é nada convencional – uma mistura de português, espanhol e iorubá. A intertextualidade traz referências factuais e biográficas, com memórias próprias e alheias. Tais combinações tornam a experiência da leitura bastante interessante.
RECORTES
“Eu atravessava seu longo jardim de entrada furiosa com minhaavó que me havia feito caminhar até lá em um calor de fogão à lenha. Ou num frio de picolé de limão. Quase sempre eu achatava sob o dedão do pé esquerdo a tentação de arrancar jasmins e de levá-los comigo. Vovó costumava pôr ramos dessa flor da terra dentro dum copo de água em cima da mesa de luz que ladeava sua cama de viúva. À noite, o perfume assombrava o quarto. Eu tinha a impressão de que morreria sufocada”.
“Não sei escrever textos em que a raiva não desponte”, diz a narradora, ao falar da “morte das gentes empretecidas e de seus esqueletos enlouçados”.
“Além de rancorosa, sou muito desconfiada. Sou da escola das ressentidas. Não preciso afirmar isso. Vocês já puderam ler. Mas preciso afirmar que não somos fortes, apenas não temos outra saída senão suportar, senão sobreviver”.
[…] Dizem que as pessoas chamadas Eluma são intuitivas sensíveis sonhadoras independentes acomodadas sociáveis não conflitivas afetivas. Minhatia não teve tempo de pensar em suas próprias características entre duas frigideiras e potes quebrados entre uma casa e outra entre filhas postiças brancas e um filho negro que se sentia postiço”.

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