Encontrar Carla Madeira foi entrar num fluxo contínuo de leituras, um rio. Foi não querer deixar a leitura para a véspera de nada. Foi testemunhar a vida sorrir natural, bruta, sem dentes, e ainda assim bela.

Tudo é rio. Véspera. A natureza da mordida. Não tenho a pretensão de responder (nem para mim mesmo) qual obra de Carla Madeira é mais impactante e prazerosa de ler. A ordem das leituras foi essa mesma, então, discorro aqui impressões sobre o último romance lido. Com algum esforço conseguirei relacionar a história com personagens e cenas das outras obras. Porque o mais relevante foi chegar a uma autora que sempre surpreende, tanto no enredo como na forma.
A natureza da mordida é centrado em duas personagens. Biá é uma psicanalista aposentada e apaixonada por literatura. Olívia é uma jovem jornalista. É a partir de um encontro em uma mesa de um sebo que ambas iniciam uma sequência de encontros e conversas em que compartilham suas histórias e o percurso da vida, essa “senhora banguela”.
“Seremos amigas se soubermos ao mesmo tempo… um, dois e já! Há rompimentos insensíveis ao diálogo. É por essas e outras que as distrações me aliviam. As rimas. As flores inesperadas. O que fisga meu olho pelo rabo. A vida não é de confiança, Olívia, nos apunhala com a mesma faca com que passa manteiga. A vida, essa senhora banguela, não teme a feiura e faz coisas medonhas com sua boca murcha que não lhe inibe as gargalhadas. Ao contrário, gosta de nos exibir a extensão da mordida que nos dará com deboches e ironias ao invés de dentes, para nos fazer pagar a língua enquanto estonteados, pra lá e pra cá, entre suas gengivas. Veja o seu caso, o que você acabou de me contar com os olhos rajados de sangue: bem na hora em que sua amiga Rita ia esclarecer porque botou você para fora da vida dela, talvez explicar um grande equívoco, talvez revelar o segredo que vem espezinhando você a tanto tempo, o que a vida faz?” (p. 19)
E aí, se você quiser saber o que acontece com Rita, a amiga de infância de Olívia, é preciso encarar o romance e o sorriso irônico e banguela da vida das personagens.
Se Tudo é rio, o que é esse tudo? O que cabe no tudo de Carla Madeira? Num livro em que no trecho final cabe a frase “Deus estava de volta”, não evitei uma leitura de certa forma moral dos personagens. Quais os vícios e virtudes de Lucy, Venâncio e Dalva?
Lucy é uma personagem fortíssima, de marcante presença no desenrolar do enredo. É uma mulher que age conscientemente pelo desejo, pela necessidade do gozo, pela luxúria (sim, falemos em termos meio teológicos aqui, ainda que seja justamente essa a visão colocada em perspectiva na obra). Mas antes que luxuriosa, Lucy tem como traço central o orgulho, a vaidade de ser desejada.
Venâncio é um personagem triste, homem que encontra no sexto adúltero menos o prazer e mais o alívio do seu sofrimento, do seu desamor. Seria assim ele também luxurioso, não parecesse ter como traços principais a ira e uma fragilidade vaidosa no amor construído (e depois destruído) com Dalva. É com essa fragilidade que ele toma decisões desmedidas de violência.
Dalva parece a menos intensa dos três, mas é justamente esse “disfarce” que a torna uma personagem complexa, profunda e especial. Ela é forte, de uma resiliência que até nos incomoda frente ao trauma de violência que viveu no casamento com Venâncio. Ao mesmo, ela é também vaidosa de seu amor e tão resistente ao perdão que é possível perguntar se seu vício maior não seria a soberba. É sofrendo e punindo o marido com sua indiferença que Dalva impressiona o leitor.
E nos entrelaçar de todos os vícios e virtudes desses e outros personagens, encontramos em Tudo é rio um fluxo que pode ser o amor, o devir, a força da natureza, a alegria, o perdão, a fé. Um fluxo caudaloso que não impõe limites entre os atos de desejo, paixão, amor e outros afetos. Um fluxo que justamente mistura tudo isso em nós, seres complexos, motivados tanto pelo bem como pelo mal. Um eterno correr de águas que nos afoga, nos embala, nos revive, nos morde, nos alimenta.
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