Seja sob a ótica do conhecimento acadêmico ou da experiência popular, o carnaval e a ficção nos pedem um olhar de grandeza

Se o conceito é festa, nada melhor do que abrir alas com Milton Cunha. A programação na Casa Estante Virtual na 23ª Festa Literária Internacional de Paraty, a Flip, iniciou com a mesa do carnavalesco e comentarista do carnaval na Rede Globo. E com ele foi um desfile ritmado em que conceitos acadêmicos se uniram à experiência cotidiana de quem vive de fato o carnaval.
Irreverente, alegre, performático, Milton Cunha é ao mesmo tempo erudito e popular, com uma habilidade de conexão instantânea com o público. Graduado em Psicologia, mestre e doutor em Letras, pós-doutorado em História da Arte, Milton é trilíngue e segue pesquisando cultura em outro pós-doc. Fez rir e também emocionar-se quem conferiu a conversa temática “Literatura também dá samba” que integrou a programação paralela da Flip.
Agora assumo por aqui a voz como intérprete desse enredo tentando não desafinar ao compartilhar um pouco do que aprendi assistindo a fala de Milton Cunha. Seguir o ritmo do que ouvi não é fácil porque ele vai de Barthes a Joãozinho Trinta mais rápido que uma virada de tamborim. Suas ideias harmonizam literatura e sambas-enredo porque, afinal, tudo é literatura, como afirma outro intelectual entre suas referências: Terry Eagleton.
A semiologia do samba e carnavalização das artes
O “sabor do saber” bakhtiniano sobre o qual Milton discorre está na própria fala dele, no próprio olhar desse homem espetáculo que estuda as relações entre sambas e a literatura sob a ótica da semiologia. Já não fossem muita coisa todas essas referências, ele trouxe ainda de Bakhtin o conceito de carnavalização e a análise de obras que se engendram pelos seus opostos. Porque é assim o carnaval, um fluxo caótico e rítmico de música, dança, personagens e pessoas de todo o tipo que levam ao último grau o conceito de carnavalização. O carnaval não é um evento que se estende por alguns dias em diferentes lugares (do mundo, inclusive). É ele mesmo uma quebra dos paradigmas do tempo e do espaço.
O carnaval impossibilita a racionalização a que tanto queremos nos apegar. No jogo de signos do qual fala a semiologia (a palavra está no lugar da coisa à qual se refere), os sambas-enredo criam uma estrutura narrativa carregada ao mesmo tempo de simplicidade e sofisticação. É preciso olhar para a cultura popular em toda a sua potência também carnavalizante. E da mesma forma para a arte porque, como afirma Milton Cunha, “a literatura se presta a um rasgo poético e lírico que está presente na carnavalização das artes”.
Milton é um grande defensor da cultura popular. Ela é uma “resposta para a solidão”. Frente às dificuldades, à exploração e ao abandono, o maracatu, o reizado, o boi de Parintins, o carnaval… são parte dessa resposta. Estão ligados pelo tambor que une o país, o tambor que deu uma identidade para o povo, principalmente nos lugares do Brasil profundo.

“Eu carnavalizo minha existência”
É nesse sentido ainda que Milton defende o carnaval como um modelo de democracia. Quem carnavaliza entra para desfilar com tudo, às vezes com tudo o que tem mesmo, e para contribuir com o próprio talento. “Eu carnavalizo minha existência”, diz Milton Cunha.
São ideias convergentes com o que tenho ouvido de algumas pessoas em Rio do Sul ao desenvolver um trabalho de pesquisa jornalística sobre os antigos carnavais da cidade. Moradores da Beira, a extinta favela que existia na área central da cidade, criaram o que provavelmente foi o ciclo mais profícuo do carnaval riosulense. As palavras de Milton Cunha elevaram a outro nível o que tento entender ouvindo os ex-carnavalescos da minha cidade.
Pesquisar a história de uma expressão cultural assim, mesmo em um lugar pequeno, é investigar o misterioso dentro do mistério. Porque os desfiles de carnaval e das escolas de samba são misteriosos justamente porque a arte popular também é.
O que a literatura tem a aprender com o carnaval
Milton Cunha destacou o que a literatura tem a aprender com o carnaval: polifonia. A potência de vozes fabricadas por quem não está no centro do poder. Um desfile é uma viagem do caos à glória, um modelo democrático em que cinco mil pessoas importam, pensando, por exemplo, em uma apresentação nas metrópoles brasileiras.
Ao ser perguntado sobre o que o carnaval pode ensinar para os novos autores, Milton Cunha afirmou que é algo no sentido de que é hora de tentar, de buscar o seu enredo, uma força orgânica que pulse dentro da obra. “Tenta! Coragem! Agora é o mistério. A sorte está lançada”, provoca ele.

O olhar de grandeza que nos pede o carnaval
Ao encerrar sua apresentação, Milton defendeu que outra coisa que motiva o carnaval e essas expressões populares é o desejo da autoafirmação e o orgulho de ser de um determinado lugar. E que é assim que as pessoas usam sua inteligência, principalmente a “inteligência negra periférica”. Nossa sabedoria histórica e nosso intrínseco desejo pelo mistério e pela fantasia se materializam no momento espetáculo do carnaval. Mas é preciso estar atento e disposto a olhar com olhos de grandeza.
E afinal, por que interessa saber disso tudo? Para ser erudito ou popular? A resposta é outra porque a pergunta não é ser isso ou aquilo. É ser inteligente para apreender a sofisticação graciosa e caótica da cultura popular e ter uma erudição que não te afaste do teu semelhante, como afirma Milton Cunha.
Continue acompanhando para conferir os próximos capítulos dessa aventura!
Para ler sobre outras vezes em que a equipe participou da Flip, clique aqui!