Literatura é a arte verbal maior e mais definitiva, e Shakespeare o centro do cânone ocidental. Essa é uma afirmação categórica do teórico Harold Bloom. Então, se todas as grandes obras e autores que compõem o cânone orbitam as criações do bardo, é possível descobrir relações de sentido entre os livros clássicos e os personagens e enredos shakespearianos.
Dentro desse campo universal e simbólico que compõe a ficção, o príncipe Hamlet e o fidalgo Dom Quixote, de Miguel de Cervantes, representam dois polos fundamentais e ao mesmo tempo contraditórios dos movimentos da existência humana.
O escritor russo Ivan Turguêniev aponta que a vida se institui como algo que gira em torno do eixo que sustenta as extremidades encarnadas nos dois personagens. Somos todos ora um pouco o príncipe da Dinamarca, ora um pouco o cavaleiro de La Mancha, vivendo mais ou menos conscientemente em virtude de ideais – aquilo que se considera a verdade, a beleza e o bem. São princípios que se encontram dentro e fora do ser, o que significa colocar o “eu” em relação com algo reconhecidamente mais elevado.
A natureza humana manifesta contradições que a arte literária transformou em duas obras clássicas. Quixote é muito mais que o Cavaleiro da Triste Figura que ridiculariza os romances de cavalaria, pois representa, acima de tudo, a fé no inabalável, no eterno e na verdade, como ressalta Turguêniev. É um ser devoto ao ideal de justiça na terra, à dedicação ao outro, à reação às forças hostis de magos, gigantes e moinhos. E se esses opressores são frutos de sua perturbada imaginação, é justamente aí que se tem a condição de fato cômica.
Quixote se ocupa com o autossacrifício, a paciência, com a crença firme e o desapego à vaidade, pois sua vontade é de natureza inexorável. Pode parecer louco, ridículo, leitor desvairado e sábio de poucas coisas, mas está certo do próprio propósito, o de ser um entusiasta, um servo da ideia de viver na terra seu esplendor. Sua força moral dá grandeza às ações, discursos e julgamentos, ainda que sua figura enfrente situações cômicas e até humilhantes.
Turguêniev: Hamlet é maior que Quixote
Não há dúvida que Shakespeare supera Cervantes, na opinião de Turguêniev. O criador de Hamlet é um gigante que deu vida ao personagem que cristalizou a perfeição numa outra extremidade do humano. O príncipe representa essencialmente a descrença, pois é tomado pela extrema análise do real e pelo egoísmo, ainda que essa centralidade no “eu” lhe custe caro. Hamlet é cético porque não encontra nada no mundo em que possa ligar a alma, portanto, resta-lhe cuidar constantemente de si, ocupar-se não com seu dever, mas com sua situação. E a dúvida não poupa nem a ele próprio. Turguêniev escrevendo sobre Hamlet é genial: “Sua mente é desenvolvida demais para se satisfazer com aquilo que encontra em si: ele tem consciência de sua fraqueza, mas em toda autoconsciência há força, daí emana sua ironia, o oposto do entusiasmo de Quixote”..
Hamlet tem desprezo pelas próprias fraquezas, por si mesmo, pelo amor de Ofélia (sua quase namorada), pela vida de Polônio (o conselheiro real a quem mata comparando-o a um rato). Faz do desprezo seu alimento e mesmo que não saiba exatamente porque vive e como sobreviver ao mal em Elsinore, segue conscientemente atado à vida. Embora cogite o suicídio, busca criar existência com o vazio da vida e com um amor expresso na mesma medida da vontade de interrompê-la.
A melancolia e a tristeza de Hamlet podem ser atraentes e despertar sentimentos opostos, pois ainda que não se possa amá-lo plenamente, tampouco é possível rir dele ou com ele; isso ocorre facilmente em relação à Quixote. Ninguém gostaria de viver a tragédia de ser um príncipe que teve o pai assassinado pelo irmão usurpador do trono e da esposa – ela ao mesmo tempo rainha e mãe, se não cúmplice, no mínimo conivente com o crime.
Ainda assim, tudo no príncipe ou ex-futuro rei é atraente. A luta com a impossibilidade do próprio destino e mesmo a dúvida sobre o desejo legítimo de alcançar o trono são o que comove e sensibiliza. Tanto é que Hamlet é capaz de atrair a afeição do sábio Horácio e construir com ele uma nobre e fiel amizade (Quixote conserva também uma intensa amizade com o Sancho Pança, mas numa relação de outra natureza).
A negação de Hamlet não é contra o bem, mas contra o mal, mais especificamente o mal exercido como falso bem. Por suspeitar da verdade e da sinceridade – veja-se a teia de simulacros e interesses que corrompem o reino dinamarquês – sua batalha mortal é contra o falso bem. Em seu rosto e sua fala não há o prazer sádico da vingança, mas o amargor e o sofrimento que permitem ao espectador ou leitor se reconciliar com o jovem príncipe. É sendo demasiadamente cético que Hamlet defende a verdade, motivo pelo qual é legítimo torcer por suas decisões. Mais um vez a categoria de Turguêniev: “é aqui que o lado trágico da vida humana, tantas vezes percebido, aparece para nós: para a ação, precisamos de vontade, para a ação precisamos de um significado, mas o significado e a vontade estão separados, cada vez mais separados…”.
A correlação de forças entre Hamlet e Quixote abrange possivelmente a mais complexa e profunda dimensão das contradições humanas. Assim, a potência criadora da literatura é o espelho que desnuda o humano frente a personagens definitivos como o príncipe e o cavaleiro.
A literatura também costura a existência com sentidos do trágico e do cômico ao mesmo tempo elementares e conflitantes. “Toda essa vida nada mais é do que a eterna reconciliação e a eterna luta de dois princípios incessantemente separados e incessantemente unidos desde sempre” (Turguêniev).
Ao leitor, cabe a coragem de Hamlet e a inspiração de Quixote para lidar com os encontros e desencontros do espírito humano com a verdade, a beleza e o bem.
Por Tiago Amado.