Naquela direção, a menos de seis ou sete noites de percurso, encontra-se Eutárpia. Não sendo metrópole, tampouco um vilarejo, a cidade é do tamanho do que dela o viajante enxerga de ruas, vielas, esquinas e ladeiras. Com um pouco mais de atenção, quem chega à Eutárpia vê que a arquitetura possui algo de temporário e o clima entre os moradores guarda um ar de contemplativa ansiedade.
Aos primeiros dias da terceira estação do ano, os mais antigos saem às varandas e olham o céu, enquanto os mais jovens, como é de se esperar, relutam a se entregar à nova rotina do que a torna outra cidade. É quando Eutárpia celebra a cheia das águas. Não é preciso uma longa temporada de chuvas para dar início ao fenômeno; há mesmo quem suspeite que os rios é que são reféns do desejo dos nativos e seus ancestrais.
No dia da chuva inaugural, os habitantes deixam as casas, as vendas, os bares e as igrejas e se prostram às margens, cada qual conforme o seu entusiasmo, para testemunhar a cheia. A maioria, claro, abriga-se em casas vizinhas, nos pés dos montes e elevações de Eutárpia. Engana-se o viajante que pensa serem as imposições do fenômeno um lamento. Com menos ingenuidade, é possível perceber que os moradores buscam ali o que a rotina de até então não permitia. Contar histórias, a maioria verídica, as melhores inventadas e fabuladas pela tempestuosa tradição milenar.
É o momento que alguns moradores relembram que, nos primórdios, os nativos de Eutárpia sacralizavam os rios, guardando em jarras de bronze um pouco d’água. Com ela, batizavam os nascidos no ano em curso. Em potes de cerâmica preparavam elixires para dar de beber aos desvalidos de males sem causa, faziam porções para as datas celebrativas de ciclos de vida e de morte. E, se ainda sobrasse água após seus trabalhos, reservavam em garrafas de vidro em local secreto para devolvê-la ao rio na próxima estação das cheias. Assim a esperança de que ele nunca cessasse.
As cheias convidam também a empreitadas mais profanas. Não é de se estranhar banhos nus nos dias pesados de chuva, quando os corpos, vistos de longe, são pontos em contato dentro de uma paisagem ousada e indestrutível. Os mais corajosos, ou necessitados, banham-se mesmo às margens rasas, clamando em pensamento que as suaves e espaçadas ondas levem as mágoas, os rancores e as palavras cortantes ouvidas e faladas ainda em lembrança.
Os mais antigos esperam o cair da noite para guardar horas de silêncio, ouvir o incessante passado presente da correnteza, a água lavando as pedras, os trechos de encostas caírem, os troncos abandonados ao leito. Os enfermos tentam a cura de suas chagas, alguns molhando a pele rugosa, outros esfregando a terra molhada sobre as feridas.
As cheias podem sustar o medo dos suicidas. Daqueles que acham indigno se atirar de uma ponte em um rio de leito ainda pobre. É aí que eles abraçam o fim no eterno profundo das águas corrediças.
As lendas não deixam esquecer que as cheias estão numa ficção primeva. Nas enseadas mais mansas, formadas próximas às casas, os meninos seriam grandes navegadores, descobridores de ilhas misteriosas, piratas destemidos. As mulheres pensariam no tempo das rainhas guerreiras e das mães que se reuniam às margens para amenizar tristezas e compartilhar alegrias sobre um filho que parte, sobre um filho que chega. Os velhos, ao contemplar as águas, dizem saudosos do tempo em que disputavam a atenção das moças em provas de travessia livre, saltos ornamentais e longos mergulhos.
Os pequenos remansos formados não muito distante da cidade, em meios às árvores, são o ponto de encontro dos amantes. Ao se aventurarem por ali, os mais audaciosos pedem às jovens que se casem com eles. Se aceitos, seus corpos aos poucos se encaixariam no fundo do barco e ali fariam amor pela primeira ou última vez. Assim, por tudo o que é, que foi e seria, é que Eutárpia continua a deitar-se sob as nuvens, fecundar o vale, acolher as águas em seu corpo e a ser continuamente território das memórias.
Ps.: conto livre e explicitamente inspirado em As cidades invisíveis, de Ítalo Calvino. Já ouvi de mais de um escritor que quem começa a arriscar-se em textos ficcionais tem como opção o exercício de imitar os grandes mestres. O texto acima é uma tentativa dessas.
Por Tiago Amado