Pesquisar a esmo os livros em uma biblioteca tem dessas coisas. Você passa os olhos pelas lombadas e de repente um título que você já considerou comprar está ali, numa das prateleiras. Eu não lembrava o que havia despertado o meu interesse em O quarto branco, de Gabriela Aguerre. Nem mesmo ler a orelha do livro ajudou a reviver a lembrança:
Gloria, uruguaia criada no Brasil, é uma mulher na faixa dos quarenta anos que subitamente vê ruir todas as certezas alimentadas durante sua vida após sofrer um aborto espontâneo e descobrir que seu corpo não será mais capaz de gerar uma vida. Demitida do trabalho e com o pai hospitalizado, ela então retorna ao Uruguai da sua infância em busca de respostas e de um pouco de paz.
Eu estava a lidar com uma lembrança ínfima de referências literárias sobre um livro que tem justamente o passado e a memória como temas. Reencontrar O quarto branco na Biblioteca Pública Municipal de Rio do Sul foi uma ótima surpresa e lê-lo justificou aquela remota expectativa da leitura. Isso porque a autora escreve com mão leve lembranças e experiências duras da protagonista, como no trecho em que Gloria recebe o exame que confirma o aborto e a impossibilidade de ter filhos:
O choro irrompe como se não fosse meu. Meu queixo tremendo é o choro de mil mulheres, meu e da minha mãe. Dela e da mãe dela. E do pai dela a mãe dele. E dessas mães as mães dela, e delas, e mais delas. Choram por mim, choram para mim e comigo, num coro que atravessa anos e séculos, até a primeira célula que é uma e se divide uma e outra e uma e outra e uma e outra vez. Essas mulheres no oco de minha cabeça, mãos fortes nas cinturas finas e grossas, olhando por trás da minha mente, dizendo vem vem que chegou a hora porque tudo acabou aqui, e não haverá mais nada nem ninguém para continuar a sua história. A minha história. (p. 10)
A partir daí seguimos com Glória para além das fronteiras entre Brasil e Uruguai porque é lá, em terras uruguaias, que estão os fantasmas à sua espera, como a irmã gêmea que morreu com poucas semanas de vida, as brincadeiras da infância, o período de autoritarismo e violência no país que obrigou muitos conterrâneos da personagem a buscarem exílio.
Todas as memórias seguem ecoando no presente de Gloria. Com elas, a autora cria um texto envolvente, delicado na forma ao mesmo que duro nos temas. É uma voz em primeira pessoa, feminina e delicada, mas firme e corajosa, que com lirismo e sensibilidade nos conta sobre dores e perdas, sobre as impossibilidades pessoais e coletivas. Na alternância entre passado e presente, conhecemos sua rotina com o companheiro Sandor, a relação com o pai e a iminência de mais uma despedida definitiva, o reencontro com o tio uruguaio, as passagens pelos quartos de lugares e tempos passados. E é entre esses quartos que está o quarto branco, “o quarto que fala muitas línguas”.
Sentimos as despedidas passadas e presentes de Glória. Com ela nos conectamos porque trata-se de uma narradora-personagem com plena consciência do jogo que fizemos com a memória e do jogo que a vida trava com a nossa história pessoal. Porque um dia eu já fui duas (p. 18), nos diz Gloria. E descobrindo as duas e as outras Glórias que já se foram, e que também permanecem nela, encontramos a beleza das perdas e dos reencontros contados por Gabriela Aguerra.
O quarto branco
Gabriela Aguerre
Todavia
1ª edição. 2019
120 páginas
Por Tiago Amado